Segunda, 29 Abril 2024
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Alberto Porfírio

Alberto Porfírio (Quixadá) Mestre Porfírio, um habitante do país das lendas In memoriam

 

Existe um lugar para onde as lendas vão depois que deixam este mundo. Pois é lá nesse lugar que mora o mestre Alberto Porfírio, lenda cearense de Quixadá que um dia arrumou o matulão com os poucos cacarecos que a pobreza permitia, umas mudas de roupa puída e a viola, ah, a viola! Podia até deixar o resto, mas a viola ia, tinha de ir, que sem viola mestre Porfírio era um “pra nada”. Pois não se concebe repentista e cordelista sem viola, num é mermo? Que nem goiabada sem queijo, mexicano sem sombrero, Romeu sem Julieta. A bichinha tinha de ir, e foi. Mestre Porfírio rodou por esse mundão de meu Deus até surgir uma proposta boa: ir pro meio da floresta amazônica raspar os pés de seringueira e extrair borracha, o ouro daquele tempo. Os olhos brilharam. Podia enricar! Mas aí o mestre matutou bem, matutou de novo e decidiu: vou é nada! E olha que já tinha até se vacinado e se alistado. Até vendera a violinha querida! Quando foi tomado por uma luz: vôte, vou não!,que a saudade do sertão é maior e eu vou já é amarrar a mala velha com as cordas e pegar a estrada.

 

Não deu outra. Largou-se Ceará a dentro, porque saudade de nordestino é coisa séria, meu senhor, minha senhora. É como diz Gonzaga: amarga que nem jiló. Mestre Porfírio preferiu ficar pelo sertãozinho querido, biscateando, ponteando viola, fazendo versos e arrancando cantigas nascidas lá dos dentros do coração dele.

 

Pra quem conhece o cenário da poesia popular nordestina, Alberto Porfírio se ombreia aos maiores, em todas as eras. O escritor Rouxinol Guimarães, conhecedor de sua obra, assegura que ele era “excelente repentista, além de escultor e cordelista”. O mesmo Rouxinol, que conheceu a arte do verso dele quando ainda era criança, é testemunha viva: “Era um artista completo. Não deixa nada a dever ao nosso Patativa”.  Quanto à inteligência de Porfírio, arremata com uma história real, que presenciou: “Se você pegasse o livro de sonetos, podia abrir e dizer a página que ele dizia o soneto inteiro de memória”.

 

Eu mesmo tive a prova, quando um dia, lá vai é tempo, meu amigo e filho dele, o fotógrafo Zé Alberto, me apareceu com um senhor ao lado (o próprio mestre) e uma porção de folhas de papel ofício datilografadas com versos da melhor qualidade. Pedia-me (logo a mim, que morro de inveja de quem consegue produzir aquelas maravilhas!) que escrevesse texto para a contracapa do primeiro livro do mestre, com quem logo entabulei conversa animada. Nem precisou pedir duas vezes: catei a maçaroca de papéis, fui pra casa e entrei pela noite me deliciando com a arte do repente e do cordel que sempre me chamou a atenção. Dia seguinte o texto estava pronto. Pouco tempo depois o livro me foi trazido pelo Zé Alberto, com quem trabalhei anos a fio na sucursal do querido “Jornal do Brasil” em Brasília, a redação mais animada e inteligente, onde dei os primeiros passos no jornalismo.

 

Na época, chamou-me a atenção uma frase do mestre, lá pelo final da obra, onde ele afirmava que “a poesia matuta, dentro em breve, não passará de peça de museu”. E eu escrevia que, ao ler isso, o sentimento era de dor, embora concordasse com ele, dado o desprezo com que, à época, a arte de repentistas e cordelistas era tratada no Brasil.

 

Hoje, 35 anos depois, verifico que mestre Porfírio e eu, felizmente, nos enganamos. Até porque a poesia matuta, tal qual a ave fênix da mitologia, sempre renasce das cinzas e ultimamente vem exibindo um vigor admirável. Já é até estudada nas escolas de nível médio, e tem serventia pra tudo neste mundo: pra ensinar pedreiro de obra a evitar acidentes de trabalho a ajudar a evitar doenças, como a dengue. Tudo isso sem deixar de ser o suporte para a expressão artística mais original da cultura brasileira. E para influenciar a obra reconhecida em Oropa, França e Bahia de gente famosa como este monstro chamado Ariano Suassuna.

 

É-me difícil escolher um fragmento da obra de mestre Porfírio para dar ideia vaga ao leitor do estro deste quixadense. Mas fico com algumas quadras que bem exemplificam a fina sensibilidade e a inteligência de que era portador. Como ele próprio escreveu, são “versos curtidos no sabor da fruta selvagem e que podem dar uma ideia da pureza e do brio da alma sertaneja”. E explica que os “erros” que poderiam ser apontados, na verdade são o resultado de seu esforço para escrever de modo a “apreender toda a força e sentimento do matuto, e sua variedade enorme de termos e diferenças de pronúncia levam os incautos a pensar que as palavras estão grafadas erradamente. Não. Elas apenas procuram reproduzir com o máximo de fidelidade o jeito de falar do povo sertanejo”.

 

O trecho que transcrevo é deste genial “Ideias de Caboclo”:

 

“O professô dos menino/fala, fala chega estronda!/querendo que eu acredite/ qui a terra seja redonda// Não, senhor, num acredito/Nunca pude acreditá/Qui viva assim todo mundo/ Andando em cima de u’a bola/ Sem nunca iscorregá!// Vósmincê preste atenção, Um monstro cuma é o trem!.../  Se a terra fdosse redonda,/ iscorregava tombem.// Ele só diz que a terra/ Veve solta pelo espaço/ Rodando num canto só/ Sem tê nada de embaraço/ Muvimenta... muvimenta/ E nunca descansa um pedaço./ E qui as volta qui ela dá/ Qui serve pra controlá/ a frieza e o mormaço.//Num acredito!.. não! Não!/ Qué sabê cuma é a terra/ Na minha maginação?/ É um prato feito de barro/ mal feito mas bem grandão!/ Emborcado em riba d’água/ Nu’a firme pusição./ Cum a gente morando em riba/ Cum toda satisfação.// Vou prová cuma é mermo/ vou dar toda insplicação:// Quando Deus fez este mundo/ mandou a terra secá/ Mandou se juntá as água/ E foi assim qui fez os má./ E se a terra já fosse doida/ Rodando pra se acabá,/ tinha derramado as água/ E era até pirigoso/ O próprio Deus se afogá(...)”

 

A obra de Porfírio não se esgota na própria criação. Vai além. Examina a contribuição de companheiros de jornada, disseca-a, seleciona trechos, exemplifica, difunde o trabalho e generosamente distribui a sabedoria deles a quem dela quiser se apropriar. Faz isso com os grandes da poesia matuta, como o Cego Aderaldo, mas igualmente com os que não mereceram o devido reconhecimento.

 

Sobre ele próprio, escreveu uma autobiografia em versos (ditada, pois já não conseguia escrever depois de vitimado por um acidente cardiovascular), que mereceu apresentação especial de Klévisson Viana, igualmente escrita em versos. O último deles diz:

 

“Lapidou versos na rocha/ Fez esculturas nos versos/ Rompeu vários universos/ Empunhando a sua tocha/ Como a flor que desabrocha/ Seu estro de menestrel/ Tinha a doçura do mel/ Um gigante da palavra/ Morre o homem, fica a lavra/ Gravada em pedra e papel”.   

 

Alberto Porfírio veio a falecer em 23 de novembro de 2009, de complicações pulmonares causadas pela inalação de cimento, material de suas esculturas.   (PJC)